Vigora no Brasil o princípio da responsabilidade patrimonial, segundo o qual o devedor responde com o seu patrimônio pelo cumprimento de suas obrigações. Por meio do processo de execução, seus bens (valores em contas bancárias, automóveis, bens móveis e imóveis etc.) podem ser atingidos para o pagamento da dívida.
Entretanto, a lei cuidou de impor limites à execução, a fim de resguardar ao devedor um mínimo de dignidade (fundamento da República), impedindo que ela seja excessivamente gravosa. Nesse sentido, certos bens foram tidos como “impenhoráveis”, ou seja, inatingíveis pela execução. Dentre eles, encontra-se o “bem de família”, isto é, o imóvel onde o devedor reside, que é protegido pela Lei n. 8.009/90, que visava dar efetividade ao direito constitucional à moradia (art. 6º da Constituição).
O problema é que, diferentemente do que ocorre na grande maioria dos outros países, a proteção conferida pela lei brasileira ao bem de família foi indiferente quanto ao seu valor. Pouco importa se tratar de um casebre ou de uma mansão: o valor do bem não é situação apta a afastar a sua impenhorabilidade.
Tal situação tem sido alvo de duras críticas pela Doutrina, para quem o direito constitucional à efetiva prestação jurisdicional resta ofendido quando a execução é infrutífera – em especial, frente a devedores que vivem luxuosamente em mansões. Haveria claro desvio na finalidade da norma, uma vez que a proteção à dignidade da pessoa humana e à moradia visaria tão somente garantir um patrimônio mínimo, sendo desarrazoado estendê-la a uma mansão. A solução, pautada na proporcionalidade e razoabilidade, seria permitir a penhora do imóvel de alto valor reservando um mínimo para a compra de outro, de menor valor.
Dando vozes à Doutrina, o projeto da lei n. 11.382/2002 continha artigo que visava permitir a penhora do bem de família cuja valor fosse superior a 1000 (mil) salários mínimos. Entretanto, tal artigo foi vetado. E em que pese a irresignação doutrinária, a proteção legislativa e jurisprudencial ao bem de família de alto valor permanece hígida.
Com efeito, no Superior Tribunal de Justiça, corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil, a regra não é relativizada. Em todas as suas decisões envolvendo a penhorabilidade de bem de família de alto valor (o que inclui, por exemplo, um caso de um tríplex que valia R$ 14 milhões - REsp n. 1.726.733/SP), o STJ manteve a proteção, sob o argumento de que não cabe ao Judiciário criar exceção que a lei não cria. Como única e isolada exceção, tem-se o voto do Ministro Salomão no REsp n. 1.351.171/SP, que defendeu a adoção de uma “interpretação mais atualizada e consentânea com o momento evolutivo da sociedade brasileira”. Entretanto, o seu voto foi vencido, e a jurisprudência do STJ continuou inabalada.
Assim, persistindo o panorama atual da jurisprudência do STJ, tem-se que, em eventual conflito, chegando a questão nesta Corte Superior, o simples fato de o bem de família ter valor elevado dificilmente será suficiente para afastar a sua impenhorabilidade. É possível, porém, que juízes de primeiro grau e tribunais estaduais e federais (2º grau) adotem entendimento mais progressista, afastando a impenhorabilidade em razão do alto valor. Caberá ao devedor prejudicado, nesses casos, conseguir levar a questão à análise do STJ, devendo, nesse sentido, se atentar aos requisitos de admissibilidade de um recurso especial, de modo a evitar que a questão não seja analisada por formalismo processual.
Diante desse cenário, instrumento pouco conhecido e que passa a ser interessante para a blindagem patrimonial (antes de constrição de dívida) é a possibilidade de se destinar – mediante escritura pública registrada na matrícula – até um terço do seu patrimônio líquido para a instituição de bem de família, que gozará das respectivas proteções legais – inclusive, prevalecendo sobre a regra que prevê que a impenhorabilidade recairá sobre o imóvel de menor valor nos casos em que houver mais de um imóvel – observadas as regras dos artigos 1.711 e seguintes do Código Civil. Tal bem, porém, torna-se inalienável, de modo que não pode, por exemplo, ser colocado como garantia de dívida.
Por outro lado, é preciso lembrar que há outras situações que podem afastar a impenhorabilidade do bem de família por expressa previsão legal. Conforme a Lei n. 8.099/90, é o caso da execução movida: a) pelo titular do crédito do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel; b) pelo credor de pensão alimentícia; c) para cobrança de impostos atinentes ao imóvel (IPTU, ITR); d) para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real; v) por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória; vi) por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. Além disso, jurisprudencialmente, há várias decisões (inclusive, do STJ) admitindo a penhorabilidade de fração ideal (parte) do bem de família quando ele for divisível, isto é, quando for possível o desmembramento do imóvel sem sua descaracterização.
Assim, nota-se a importância do instituto do bem de família, mesmo antes da execução, tanto para o credor quanto para o devedor, que devem ficar atentos às peculiaridades inerentes ao instituto. Se, por um lado, o devedor pode tomar certos cuidados para evitar que seu bem de família seja penhorado, por outro, o credor pode se antecipar a eventuais manobras fraudulentas e optar por aquelas medidas executivas que sejam mais efetivas, ainda que, por vezes, não sejam conhecidas pela maioria.
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