Algo bastante comum na vida do setor público brasileiro são os procedimentos de apuração de responsabilidade em ações de improbidade administrativa e ações penais. São geralmente propostas em conjunto, perante dois juízos diversos, cada qual responsável por analisar um mesmo fato sob óticas e procedimentos diversos.
Ocorre que, como seria de se esperar, ações sobre o mesmo fato, mas que são analisadas sobre prismas diversos, e mediante procedimentos diversos - um destes notoriamente mais garantista do que o outro – tendem, também, a produzir resultados diversos. Não é incomum, portanto, que alguém seja condenado na esfera cível e absolvido na esfera penal. Isto traduz bem a ultima ratio que é o direito penal: o grau de certeza exigido pelo direito penal parece sempre mais rigoso do que aquele exigido para a condenação na esfera cível.
Talvez de forma um tanto apressada, a qualificação do juízo penal como um juízo mais severo, e, portanto, mais garantista, acabava por gerar uma falsa impressão de que as sentenças prolatadas nas ações de improbidade administrativa podiam contar com graus não tão apurados de certeza, afinal, esta não seria a ultima ratio. Nada mais enganador. As penas nas ações de improbidade são absolutamente severas, e por vezes podem significar a morte: a morte de empresas, proibidas de contratar com o poder público; a morte de carreiras políticas, com a suspensão de direitos políticos (e sua forma sui generis de contagem de prazos).
Fora tomado desse espírito de análise mais acurada das consequências que o Congresso Nacional promoveu as importantes alterações que culminaram na edição da Lei 14.230/2021, ao estabelecer mais especificamente no art. 21, § 4º, que estabelece “a absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941”.
A expressa comunicabilidade dos fundamentos fora uma forma interessante de evitar que as ações de improbidade administrativa caíssem, como era comum, na vala da plena independência das esferas, que viabilizava a comum circunstância da absolvição criminal e condenação na improbidade administrativa. Infelizmente tal dispositivo encontra-se com suspenso, por decisão do STF em sede de ADI 7.236/DF, sob relatoria do Min. Alexandre de Moraes.
Essa nova dinâmica imposta na LIA fora bem trabalhada, principalmente com a expressa revogação do tipo de improbidade administrativa culposa. Um tipo que assombrava a doutrina, e criava certa perplexidade ao na realização de que o tipo de improbidade culposo nada mais significava que a desonestidade por engano. Figura que por si só era um contrassenso, mas que servia de refúgio persecutório. Há aqueles que digam que a abolição fora um equívoco, à medida que o Código de Penal ainda prevê a hipótese do peculato culposo, no art. 312, §2º - e haveria certa razão aos críticos caso o artigo não estabelecesse claramente a concorrência para o crime de outrem.
A abolição da improbidade culposa porém caminhou adequadamente no sentido de manter maior coerência não apenas etimológica, como também para com a própria legislação penal, que estabelece a modalidade culposa nos crimes contra a administração pública como algo excepcionalíssimo, admitindo, como regra, apenas a forma dolosa.
E fora nesse espírito de comunicabilidade que o Superior Tribunal de Justiça prolatou interessante acórdão em RCH 173448/DF, de relatoria do ilustre Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, que levou o STJ a determinar o trancamento de ação penal com base na absolvição em ação de improbidade administrativa.
O voto do Min. Fonseca, seguido à unanimidade de votos pelos membros da 5ª Turma, é perspicaz em reconhecer e interpretar esta nova realidade da dinâmica do sistema punitivo da improbidade administrativa.
Na oportunidade indicou o ilustre relator que duas circunstâncias foram determinantes para a conclusão: o juízo da improbidade já havia feito análise do mérito da demanda, concluindo pela ausência de dolo e ausência de obtenção de vantagem pessoal.
Em que pese as instâncias sejam independentes e autônomas, como ressalta o ministro, isto não impede e não exige o juízo penal de avaliar os elementos de persuasão lançados pela defesa. Neste caso, um elemento forte havia sido ignorado, elemento envolvendo circunstâncias que afetam não apenas a tipicidade (dolo) quanto o próprio fato em si (a vantagem pessoal, o proveito econômico): a sentença de improcedência da ação de improbidade administrativa.
A sentença concluía que não fora demonstrado qualquer dolo no ato de dispensa de licitação, e pelo fato de que nenhum dos particulares auferiu qualquer benefício com a contratação – inclusive pelo fato de que o contrato administrativo sequer teve efeitos, sendo anulado pelo Tribunal de Contas em momento anterior a qualquer desembolso.
A perspicácia do voto do Min. Fonseca resta na afirmação de que “não é possível que o dolo da conduta em si não esteja demonstrado no juízo cível e se revele no juízo penal, porquanto se trata do mesmo fato”. Poder-se-ia acrescentar, de modo mais simples, que se não há prova do dolo da conduta “menos grave” e mais abrangente, a improbidade, por certo não haverá da conduta “mais grave” e mais específica, a criminal.
Embora ainda recorrido pelo Ministério Público, esse inovador posicionamento do Superior Tribunal de Justiça é importante para fins de bem estabelecer a interpretação da alteração legislativa da LIA, e dá, de modo mais contundente, adequação sistêmica à interpretação jurídica no microssistema de direito punitivo, e que deve resultar em uma melhor dinâmica de confrontação de pronunciamentos judiciais, evitando assim a infeliz e habitual discrepância que ocorria antes da nova lei.
© Todos os direitos reservados