Como, há muito tempo, observava Calamandrei, o processo judicial pode ser visto como um jogo.[1] Mais precisamente, um jogo de estratégia, que pode ser comparado a uma partida de xadrez. Há regras pré-estabelecidas que devem ser observadas pelas partes, que se enfrentam em busca da vitória. É preciso antecipar as jogadas do oponente, avaliar as possibilidades e tomar decisões cuidadosas para obter o resultado desejado.
O que muitas pessoas não percebem, porém, é que, assim como um jogo, ele começa antes mesmo do “apito inicial”. Nesse sentido, por mais distante que possa parecer, a lição de Bernardinho (treinador da seleção brasileira de vôlei) é digna de nota também no processo: a vontade de se preparar tem que ser maior do que a vontade de vencer. Vencer, será consequência da boa preparação. Em verdade, no mundo dos litígios, ao contrário do mundo dos jogos, é possível vencer sem mesmo ter que jogar. É possível, até mesmo, uma vitória sem perdedores. Mas isso requer uma boa preparação.
Sob essa ótica, destaca-se um instrumento de preparação processual ainda pouco conhecido e pouco utilizado por boa parte das pessoas: a produção antecipada de provas.
Prevista nos artigos 381 e ss. do Código de Processo Civil, a produção antecipada da prova é um procedimento judicial que permite produzir a prova antes e independentemente do processo. O objeto é tão somente a produção da prova. Como explica Talamini, trata-se da consagração do direito autônomo à prova: superando a noção de que as provas têm por destinatário único o juiz, reconhece-se que as partes têm direito à produção ou à aferição da veracidade da prova por uma série de razões, tais como: “avaliar suas chances efetivas numa futura e eventual disputa litigiosa, estimar os custos de tal disputa, verificar as possibilidades e termos de um possível acordo com o adversário – e assim por diante.”[2]
Nesse sentido, o art. 381 do CPC prevê que “a produção antecipada da prova será admitida nos casos em que: I - haja fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação; II - a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito; III - o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação.”
O procedimento não guarda maiores formalidades. Na petição inicial, além dos requisitos gerais do art. 319 do CPC, o autor deve justificar a necessidade de antecipação da prova e mencionar com precisão os fatos sobre os quais a prova há de recair. Recebida a inicial, se for admitida, o juiz determinará a citação de interessados na produção da prova ou no fato a ser provado. E o rito seguirá, no que couber, aquele do procedimento comum, a depender da prova a ser produzida (documental, testemunhal, pericial). Uma vez produzida a prova pretendida, porém, o procedimento se extingue: não há valoração da prova (CPC, art. 382, § 2º). Por isso, eventual contestação ou recurso deve se voltar apenas à admissibilidade da prova – e não ao objeto do litígio/à relação de fundo.
Estrategicamente falando, a produção antecipada de provas é interessante sobre diversas perspectivas. Dentre elas, destaca-se a previsibilidade que ela confere. E, da previsibilidade, vem a segurança e a mitigação de riscos.
Nesse sentido, João Pedro de Souza Mello observa que “nunca se sabe o que dirá uma testemunha, qual será o resultado de uma perícia, o que dizem alguns documentos”.[3] Trata-se de uma imprevisibilidade natural ao processo, que dificulta calcular quais as chances de êxito de eventual ação. Mas ela não necessariamente precisa ser levada ao processo; pode ser mitigada com a produção antecipada de provas: antes mesmo de ajuizar uma ação principal, é possível verificar o resultado de uma perícia, por exemplo, e a partir disso, calcular, com mais segurança, quais as chances de êxito (verificando a jurisprudência acerca da valoração de tal prova, que poderá ser emprestada no processo principal).
Isso é especialmente relevante para fins de mitigação do risco de sucumbência. Uma prova desfavorável pode culminar na improcedência da ação. Se for produzida na ação, já será tarde para o autor desistir (CPC, art. 485, § 4º), e a improcedência levará à sucumbência (CPC, art. 82, § 2º e 85). Se, por outro lado, for feita na produção antecipada de provas, o autor pode simplesmente optar por não ajuizar a ação principal, evitando o risco sucumbencial. Como não há valoração da prova neste procedimento, mesmo que ela seja desfavorável, o autor não será condenado à sucumbência.
E outras vantagens estratégicas poderiam ser mencionadas, tais como a possibilidade de produzir uma prova antes que ela se torne impossível (ex.: um erro de obra não pode esperar toda a ação principal para ser constatado; a obra precisa continuar, sanando o erro; mas a prova dele pode ser feita antecipadamente) e a possibilidade de recorribilidade imediata (no procedimento comum, eventual decisão que inadmita prova, em regra, só pode ser impugnada após a sentença; na produção antecipada de provas, a inadmissão da prova é desde logo recorrível, cf. arts. 1.015, 1.009, § 1º e 382, § 4º do CPC).
Mas ela também é poderosa para fins negociais. Em obra clássica sobre negociação,[4] Lax e Sebenius destacam a importância das “ações que ocorrem fora da mesa” como forma de remodelar a situação em favor da parte. Nesse sentido, produzindo antecipadamente uma prova favorável, a parte se fortalece perante a outra, que tende a estar mais interessada a firmar um acordo (e a fazer maiores concessões) para mitigar os riscos de uma ação judicial.
Em suma, o que importa perceber é que, sendo um processo como um jogo, em que tende a se sair melhor aquele que melhor se prepara, a produção antecipada de provas (muitas vezes subestimada) é uma ferramenta poderosa e que pode oferecer vantagens significativas. Diante disso, contar com a orientação e a expertise de profissionais que analisem o litígio de forma holística, desenhando e preparando estrategicamente a melhor abordagem para o caso, é essencial para obter resultados satisfatórios no litígio.
[1] CALAMANDREI, Piero. Il processo come giuco. Rivista di diritto processuale. Padova, A. Milani: 1950.
[2] TALAMINI, Eduardo. Produção antecipada de provas no código de processo civil de 2015.
[3] MELLO, João Pedro de Souza. Análise estratégica da norma processual. Dissertação de mestrado. Universidade de Brasília. Brasília, 2022.
[4] LAX, David A. SEBENIUS, James K. Negociação 3-d: ferramentas poderosas para modificar o jogo nas suas negociações. São Paulo: Bookman, 2008.
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