Uma situação frequente nos negócios em crise é existência e crescimento exponencial das dívidas tributárias. A razão é bastante compreensível, quando se acumulam passivos bancário, trabalhista, com fornecedores, tributário é mais racional deixar de pagar o Fisco do que deixar de pagar funcionários e fornecedores, o que levaria à paralização das atividades. Disto que a primeira ação de uma empresa em crise envolve quase como regra a suspensão do pagamento dos tributos.
Este ato, embora seja compreensível, e até mesmo racional, acaba se tornando uma bola de neve, que vai crescendo continuamente. Uma dívida que começava manejável passa por aumento via incidência de juros e multa, tornando-se um problema gigantesco no longo prazo.
De modo pouco adepto à realidade, a dívida tributária inclusive representava um entrave ao próprio procedimento de recuperação judicial, à medida que a lei (art. 191 do CTN e 57 da Lei 11.101/05) exige a regularidade fiscal como requisito do deferimento do pedido de recuperação judicial. As inovações, tanto legislativas quanto jurisprudenciais, porém, reconheceram a força da realidade, de forma que continuamente o STJ dispensava a exigência da regularidade fiscal na recuperação judicial, à medida que, se assim não o fizesse, não existiria qualquer exemplar de deferimento de recuperação judicial.
A primeira alteração legal relevante veio através da Lei 13.043/14, que estabeleceu a viabilidade do parcelamento das dívidas tributárias no contexto da recuperação judicial, viabilizando o pagamento em 84 parcelas. A lei, porém, tinha pouco efeito prático, e estabelecia um parcelamento até mesmo menos vantajoso do que o oferecido a outras espécies de devedores.
A Fazenda comportava-se como um verdadeiro combatente nas recuperações judiciais, participando de inúmeras disputas envolvendo bens do recuperando. Isto porque, ao contrário dos demais credores, a Fazenda Pública não é afetada pela suspensão de suas execuções, ou seja, mesmo sob o processamento da RJ o Fisco continua com as medidas necessárias à quitação dos valores perquiridos, e isto tudo alheio ao juízo da recuperação, diretamente via atos do juízo da execução. Uma medida importante para ao menos mitigar o poder do Fisco sobreveio com a Lei 14.112/20, no art. 6º, §7º-B, que permite ao juízo da recuperação a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial.
Continuando as alterações relevantes, para tornar o Fisco um ator menos desproporcional nas recuperações judiciais, a Lei 14.112/20 incorporou novas espécies de planos especiais de pagamento, sendo estes:
i) pagamento em 120 parcelas de proporção progressiva em relação ao montante consolidado, iniciando com pagamento de valor mínimo de 0,5%;
ii) em relação a tributos passíveis de retenção na fonte, de descontos de terceiros ou de sub-rogação e a valores recebidos pelos agentes arrecadadores e não recolhidos aos cofres públicos;
iii) liquidação de até 30% da dívida consolidada no parcelamento, com a utilização de créditos decorrentes de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa de CSLL;
iv) a transação com Fazenda.
Estes últimos, inovações menos usuais e mais interessantes, com potencial de maior efetividade. Os instrumentos são regulamentados pela Lei 13.988/20, alterada também pela Lei 14.375/22.
O prejuízo fiscal é uma decorrência de uma avaliação contábil. É especificamente conexo a um resultado negativo da contabilidade fiscal, demonstrando o descompasso entre as despesas e a receita. Se, como se espera na recuperação judicial, os anos passados tenham sido os ruins, abrindo porta para anos melhores – anos estes que são recomposição de receitas, de superávit, uma recuperação dos prejuízos acumulados durante a crise. Então o que legislação sabiamente propõe é a compensação entre os períodos: o crédito do prejuízo (durante a crise) é utilizado para compensar o lucro posterior. Ou seja, não se trata de uma renúncia fiscal, tampouco de um benefício fiscal.
O prejuízo fiscal pode ser compensado com lucros positivos de exercícios futuros, calculado na base da CSLL, até o limite de 30% do valor do crédito. E esse valor futuro pode ser utilizado para o abatimento de até 70% do saldo remanescente da dívida tributária principal (100% em relação a acessórios como juros, correção, multa e encargos legais).
Para que se tenha uma noção do impacto da medida, a própria PGFN estima que serão viabilizadas a negociação de cerca de R$ 2 bilhões, desse valor R$ 600 milhões em dinheiro, e o restante em prejuízo fiscal e base negativa da CSLL.
As transações ainda podem admitir formas variadas. A utilização de precatórios da União para o abatimento de dívidas já se mostrou viável, o que implica também na potencialização de um mercado paralelo de negociação de precatórios (de regra, porém, comprados com grande deságio), como forma de viabilizar a oposição em valor de face contra a União. Essa ferramenta, porém, não tem o mesmo potencial que a utilização do prejuízo fiscal, a medida que este viabiliza a utilização sem a necessidade de desembolso imediato (como ocorre quando da compra de precatórios).
Nos casos de recuperação, seja judicial seja extrajudicial, a Portaria 6757/PGFN estabelece a presunção de que os créditos tributários são irrecuperáveis, consoante art. 25, III, “b”, facilitando assim o enquadramento do devedor no programa.
Um exemplo interessante, e um dos primeiros no país envolvendo recuperandas, foi a Agromaia. A empresa acumulava passivo fiscal de cerca de R$ 47 milhões. Em 2021 apresentou uma primeira proposta de regularização tributária, inicialmente sem a utilização do prejuízo fiscal, o que por si só diminuiria o montante global para R$ 23 milhões. Já com a aplicação do prejuízo fiscal, no limite de 70%, foi possível a redução ainda mais brusca dos valores, quedando ao fim em R$ 7 milhões, com o pagamento desse remanescente em 60 parcelas.
Trata-se de um case relevante para avaliar o impacto da alteração legislativa. A medida que viabilizou a regularização integral do débito e, mais do que isso, reduziu o montante de débito de pressão imediata (líquida, em dinheiro) em 85%, dando fôlego extra à recuperanda.
É importante a atenção a esses novos instrumentos tendem a mudar a relação do Fisco na Recuperação Judicial, e já tem implicado em mudanças jurisprudenciais significativas em importantes tribunais do país. A reticência inicial do STJ em aplicar a necessidade da regularidade fiscal como requisito da recuperação judicial pode eventualmente ser alterada, à medida que esses novos remédios viabilizam de forma mais efetiva a negociação dos débitos, permitindo, em caso de celebração, a certidão positiva com efeitos de negativa.
Há uma tendência de que haja menor flexibilização do art. 58 da Lei 11.101/05, passando por uma virada jurisprudencial a exigir ao menos indicativos sólidos de que a recuperanda busca realizar tratativas com o fisco, para resolver os impasses decorrentes do passivo tributário.
Ocorre que entrave, porém, parece ter se formado através da forma como a Fazenda Pública decidiu regulamentar a matéria. A indicação de discricionariedade administrativa, sem a vinculação a regras específicas, pode acabar por frustrar e tornar essa inovação letra morta. Regras e devem existir justamente como formas de limitar a discricionariedade, expondo requisitos específicos, que, uma vez cumpridos, viabilizam uma resposta pré-determinada, o que acaba apagado quando o texto estabelece que a medida ocorrerá “a exclusivo critério da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional”.
Permanece ainda em aberto a avaliação de como se dará o uso da discricionariedade administrativa pela PGFN, mas os reflexos dela são certos: implicarão seja na judicialização da decisão administrativa, quanto na equalização pelos juízos falimentares na apreciação do art. 58.
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